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segunda-feira, 17 de março de 2014

Serendipidade: encontros com o acaso



Em um mundo cada vez mais racionalizado e programado, que limita a liberdade na ciência, nas relações sociais e na internet, pesquisadores defendem o retorno à serendipidade, a arte de descobrir o inesperado

Por Bolívar Torres

Inventado em 1754 pelo inglês Horace Walpole, o termo serendipidade expressa um conceito velho como o mundo: a arte de encontrar o que não se está procurando. Sua origem está na milenar lenda oriental “Os três príncipes de Serendip”, sobre viajantes que, ao longo do caminho, fazem descobertas felizes sem nenhuma relação com seu objetivo original. Trata-se de um estado de espírito, um poder de percepção aberto à experiência, à curiosidade, ao acaso e à imaginação, que ao longo dos séculos esteve na origem de grandes eventos históricos (como a invenção acidental da penicilina por Alexander Fleming ou a descoberta da América por Cristóvão Colombo).

Embora obscura e de difícil pronúncia, a palavra está cada vez mais presente em pesquisas acadêmicas. Esquecido por muito tempo, o conceito virou bandeira de diversos especialistas, que encontraram na antiga lenda oriental um contraponto a uma sociedade demasiadamente controlada e programada, que não deixa margem para o risco e as descobertas fortuitas. Em artigos, livros e conferências, eles lamentam a perda da capacidade de se deixar levar pelo acaso, seja na pesquisa científica, nas relações sociais e até mesmo na internet, onde os caminhos antes sinuosos do hipertexto se encontram ameaçados.

Autora de “Serendipité: Du conte au concept” (“Serendipidade: Do conto ao conceito”, em tradução livre), lançado em janeiro na França pela Éditions du Seuil, Sylvie Catellin acredita que a história de Serendip nos devolve uma maneira mais livre de apreender o mundo e de se relacionar com o conhecimento.

— Em todos os campos, seja científico, pessoal ou artístico, vivemos uma ditadura do número, da rentabilidade, dos modelos fechados e hiperracionalizados — aponta Sylvie, professora de ciência, cultura e comunicação na universidade de Versailles-Saint-Quentin-en-Yvelines. — O sucesso da serendipidade é uma resposta a este mal-estar contemporâneo. É algo muito forte, porque vem lá de trás, de um conto milenar, que viajou por todas as culturas, línguas e épocas. Com a serendipidade, você inventa suas regras e desvia dos caminhos batidos. Ela reumaniza o mundo e nos devolve a fantasia, a imaginação, a consciência, o prazer de ver aquilo que os outros não veem.

Segundo Sylvie, há um mal-entendido recorrente quando o assunto é serendipidade. Ao contrário do que muitos pensam, a palavra não remete apenas a achados acidentais, mas a uma mistura de sagacidade e acaso. Para fazer grandes descobertas, é necessário prestar atenção aos sinais — e saber interpretá-los. Afinal, as revelações dos príncipes de Serendip só foram possíveis porque eles sondaram as surpresas à sua volta, expandindo seus horizontes com a mente preparada.

— Todas as grandes descobertas tiveram em seu processo de origem a serendipidade, porque nunca sabemos exatamente onde é preciso pesquisar — afirma Sylvie. — E isso mostra que não podemos programar as descobertas. Por outro lado, há toda uma corrente da ciência atual que trabalha com objetivos, resultados e calendários pré-definidos. São pesquisas que acabam seguindo apenas uma única direção.

A própria lógica do mundo contemporâneo, dividido em nichos e grupos de afinidades, não promoveria o espírito explorador.

Diretor do Centro para Mídia Cívica do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e autor de diversos livros sobre a liberdade na internet, o americano Ethan Zuckerman é um dos principais críticos da homofilia — a tendência das pessoas em criar vínculos com aqueles que compartilham os mesmos interesses, valores,cultura, etc. Um fenômeno crescente tanto na estrutura de nossas cidades, fragmentada em guetos sociais, culturais e econômicos, quanto na mentalidade comunitária que tomou conta da internet. Como os sistemas de pesquisa, os aplicativos para celular e os filtros das redes sociais nos oferecem a possibilidade de buscar exatamente aquilo que queremos (ou, pelo menos, aquilo que acreditamos que queremos),
estaríamos, em todos os aspectos de nossas vidas, trocando o risco pela segurança, sugere Zuckerman.

— Serendipidade e risco estão intimamente conectados — explica Zuckerman. — E um dos problemas do mundo contemporâneo é que não há estímulo para o risco.

Deslocamentos previsíveis Zuckerman vê semelhanças entre a evolução dos espaços urbanos e do funcionamento das redes digitais. Em sua origem, ambos se apresentavam como um motor de serendipidade ao ligar diferentes tipos de pessoas e promover o encontro com o estranho e o inesperado. Mas, assim como até mesmo os moradores das capitais cosmopolitas se isolam em guetos, a internet passou a fechar seus usuários em bolhas de afinidades. As redes sociais conectam cada vez mais indivíduos — só que a maioria deles com interesses muito parecidos.

— A maior parte dos moradores das cidades se desloca por um número muito pequeno de lugares — analisa. — Poucas pessoas experimentam o que uma cidade pode oferecer. E essa tensão entre a oportunidade de diversidade oferecida pela cidade e a realidade do nosso isolamento é muito próxima do nosso uso da internet. Por exemplo, eu me considerava uma pessoa muito plural. Mas, quando George W. Bush foi reeleito, me dei conta que quase todos os meus contatos nas redes tinham posições políticas parecidas com as minhas.

Segundo Zuckerman, nossa perspectiva é muito menos diversa do que pensamos — e a limitação não data de agora. Em 1952, o sociólogo francês Paul-Henry Chombart de Lauwe já mostrava que os deslocamentos de uma estudante parisiense podiam ser bastante previsíveis; ao transcrever os percursos cotidianos da jovem em um mapa da cidade, notou que se sobressaía um triângulo ligando o apartamento dela à universidade em que estudava e à residência da sua professora de piano. O esquema traduzia “a estreiteza da verdadeira Paris em que cada indivíduo vive”.

Algo parecido aconteceu com a internet. Até pouco tempo, o hipertexto era, de fato, uma ferramenta notável de serendipidade. Em um simples clique, pulava-se livremente de uma página a outra, viajando sem muita lógica entre conteúdos discrepantes. Partia-se de uma busca sobre física quântica na Wikipedia e acabava-se em um blog anônimo sobre complôs alienígenas. Nos últimos anos, porém, a navegação se tornou menos dispersa e mais centralizadora. Um punhado de grupos como Yahoo, Google, Facebook e Microsoft formaram uma espécie de condomínio, do qual poucos usuários costumam se afastar.

Ao entregar nossos dados para essas empresas, permitimos que elas personalizassem nossa experiência na web. Baseando-se num histórico pessoal de navegação, sites como Google e Facebook criam uma hierarquia de conteúdo, priorizando aquilo que eles consideram mais pertinente para seus usuários. É o que muitos chamam de “ditadura do algorítimo”: as máquinas teriam criado uma ilusão de serendipidade, nos fazendo acreditar que nossos achados na internet são obra do acaso, quando na verdade foram guiados por um robô.

Autor de “O filtro invisível — o que a internet está escondendo de você” (Zahar), o ativista Eli Pariser acredita que nossa experiência na web se tornou uma espécie de “bolha de filtro”. Em um mundo com sobrecarga de informação, os algorítmos praticariam uma forma muito sutil de censura, escolhendo as notícias às quais estamos interessados — mas que não são necessariamente aquela que precisamos ver. Esta curadoria, admite Pariser, sempre existiu: a diferença é que ela não é mais feita por humanos, e sim por máquinas. Outro problema é que se trata de uma edição invisível, que se apresenta como neutra quando na verdade não é.— O que estamos vendo agora é a passagem de tocha dos editores humanos para os algorítimos — lembrou Pariser, em uma de suas palestras no TED. — Só que os algorítimos não têm o mesmo tipo de ética embutida dos editores. Se são mesmo os algorítimos que vão fazer a curadoria do mundo para nós, então precisamos nos certificar que eles não irão apenas se basear em relevância. Precisamos nos certificar que eles também nos mostrarão coisas que nos deixam desconfortáveis, coisas que são desafiadoras e importantes.

Terra incógnita

O próximo desafio do mundo digital, acredita Ethan Zuckerman, é repensar uma internet que, de fato, nos conecte com estranhos e nos faça descobrir o impensado.

— É possível construir ferramentas que aumentem a serendipidade — avalia Zuckerman. — No momento, tenho uma aluna que está trabalhando em um projeto chamado Terra Incógnita. Com sua permissão, a ferramenta entra no seu browser, olha para os artigos que você lê e percebe quais tópicos você se interessa de forma geral, e em que países você está procurando por eles. Digamos que, depois de uma semana, a ferramenta descobre que você se interessa por direitos humanos, mas também pelo Brasil. Ela então lhe propõe artigos sobre este tópico, mas em diferentes partes do mapa, oferecendo uma maior diversidade.

Para se ter serendipidade, você precisa saber o que a pessoa quer, mas também aquilo que ela não sabe, e tendo consciência de que há partes do mundo que ela não conhece.

O futuro promete novas ferramentas, mas nem todas parecem estimular a serendipidade. Sylvie Catellin teme a popularização do Google Glass, um acessório em forma de óculos que possibilita a interação dos usuários com conteúdos em realidade aumentada (“Como o ‘1984’, de George Orwell, vão nos dizer o que devemos ver”, justifica) e de sites e aplicativos de relacionamento, como o Lulu e Tinder, que reduzem os encontros afetivos à efetividade da lógica de mercado.

— Todo progresso traz junto uma regressão — opina Sylvie. — Mas não é a técnica em si que nos desumaniza, e sim a maneira como a usamos. O importante é que a técnica não nos simplifique, não nos coloque em padrões e números. Por isso a serendipidade é um chamado para a liberdade, para a desprogramação da nossa vida. É algo que não podemos modelizar, mas podemos assimilar para ir além das nossas vontades, além dos nossos encontros.

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