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sábado, 15 de novembro de 2014

SERVIÇO DE NEGRO





Um garoto  negro  termina  um  serviço  que  lhe  havia  sido solicitado e, orgulhosamente, garante ter feito “serviço de branco”. Várias  moças  respondem  a  anúncio  para  secretária;  algumas perguntam se podem ser entrevistadas, “mesmo sendo negras”. Ser negro  ou  mulato  e  caminhar  pela  cidade  é  considerado  “atitude suspeita” por muitos policiais. Como dizia um conhecido – para meu horror  e  indiferença  dos  demais  participantes  da  conversa:  “Não tenho nada  contra  o negro ou nordestino,  desde  que  saibam  seu lugar”. E esse lugar, claro, é uma posição subalterna na sociedade.

Numa sociedade competitiva como a nossa o ato de etiquetar o outro  como  diferente  e  inferior  tem  por  função  definir-nos,  por comparação, como superiores. Atribuir características negativas aos que nos cercam significa  ressaltar as nossas qualidades, reais ou

imaginárias. Quando passamos da ideia à ação, isto é, quando não apenas dizemos que o outro é inferior, mas agimos como se de fato ele o fosse, estamos discriminando as pessoas e os grupos por conta de uma característica que atribuímos a eles.

De uma forma mais precisa podemos dizer que o discurso preconceituoso procura enquadrar as diferentes minorias, a partir de um pré-julgamento decorrente da generalização não demonstrada. Mas isso não importa à pessoa preconceituosa. Afirmações do tipo “os portugueses são burros”, “os italianos são grossos”, “os árabes, desonestos”, “os judeus, sovinas”,  “os negros, inferiores”, “os nordestinos, atrasados”, e assim por diante, têm a função de contrapor o autor da afirmativa  como a negação, o oposto das  características  atribuídas  ao  membro  da  minoria.  Assim, o preconceituoso, não sendo português, considera-se inteligente; não sendo italiano, acredita-se fino; não sendo árabe, julga-se honesto; não sendo judeu, se crê generoso. É convicto de sua superioridade racial, por não ser negro, e de sua superioridade cultural por não ser nordestino.

É  importante  notar  que,  a  partir  de  uma  generalização,  o preconceito enquadra toda uma minoria. Assim, por exemplo, “todos” os negros seriam inferiores, não só alguns. A inferioridade passaria a ser uma característica “racial” inerente a todos os negros. [...] E o preconceito é tão forte que acaba assimilado pela própria vítima. É o caso do garoto que garantiu ter feito “serviço de branco”. Ou do imigrante que nega sua origem. Ou, ainda, da mulher que reconhece sua “inferioridade”.

Quando se fala de minorias tem sempre um gaiato que diz que minorias são maioria, pois se somarmos as mulheres aos negros, aos imigrantes e aos outros já teríamos uma ampla maioria. Teríamos, sim, se estivéssemos falando de matemática e não de preconceito. [...] É evidente que o total de pessoas atingidas pelo preconceito constitui a maioria numérica da sociedade, principalmente se nela incluirmos as mulheres, ainda fruto de preconceitos machistas elementares (“mulher não sabe dirigir”, “mulher é objeto”, são apenas alguns dos mais correntes). Se somarmos as mulheres aos negros, aos nordestinos e descendentes de algumas nacionalidades já mencionadas, as “minorias” se transformarão numa esmagadora maioria.

Seria, pois, errado falar em minorias? Não, uma vez que o conceito de minoria é ideológico, socialmente elaborado e não aritmeticamente constituído. Isto quer dizer que o negro de que se fala não é o negro concreto, palpável, mas aquele que está na cabeça do preconceituoso. E isso tem raízes históricas profundas.

[...]

(Jaime Pinsk – 12 faces do preconceito. São Paulo: Contexto, 2000)

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