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sexta-feira, 23 de setembro de 2011
O sentido místico da consciência planetária
O sentido místico da consciência planetária
Faustino Teixeira - PPCIR-UFJF
“Aquele que amar apaixonadamente Jesus
escondido nas forças que fazem a Terra crescer,
a Terra, maternalmente, o levantará
em seus braços gigantes,
e o fará contemplar a face de Deus”
(Teilhard de Chardin)
Introdução
Como indica Leonardo Boff, a retomada da dimensão espiritual da vida humana talvez seja uma das transformações culturais mais significativas do século XXI[1]. Trata-se da viva consciência de que o ser humano não é somente parte do universo material, mas igualmente espírito que se integra ao Todo, como ente “re-ligado a todas as coisas” e que lança interrogações fundamentais sobre o sentido da história e do destino humano. Um dos grandes desafios de nosso tempo relaciona-se à consciência planetária: como encontrar um caminho civilizacional que saiba incluir a todos, incluindo a natureza; um caminho que possibilite o enriquecimento da compreensão do humano, que envolve não apenas a relação consigo mesmo e com os outros, mas igualmente a relação com os cosmos, que é o seu lugar natal. Nada mais nocivo que continuar alimentando a idéia moderna da auto-centralidade do ser humano e os desdobramentos problemáticos de sua relação de domínio com a natureza. O momento exige uma sensibilidade nova:
Começamos a perceber que destruímos a nós mesmos com essa intemperança. Começamos a entender que o mundo é nossa morada, na qual nascemos e estamos vivendo, e que merece proteção. Melhor: essa natureza merece respeito e escuta, ´escuta poética`, pois ela tem valor em si mesma. E uma ´nova aliança`entre ela e nós deve ser estabelecida (Prigonine e Stengers), além daquela em que ´o homem é senhor e possuídor do mundo`(Descartes)[2].
O sentido místico da consciência planetária convoca o ser humano a uma nova dinâmica relacional, que envolve o olhar, a escuta e a aliança com o Todo. Pode-se falar ainda em hospitalidade: ser capaz de hospedar o outro e a realidade envolvente. Isto requer muita humildade e quebra das arrogâncias identitárias, na medida em que traduz uma nova forma de instalação no mundo, marcada pela “delicadeza espiritual”, pela simpatia, cortesia e retomada do senso da maravilha. Em linha de descontinuidade com a lógica prometeica, que busca tudo controlar e explicar, há que reaprender o ritmo da imanência, que envolve humildade e abertura, ou seja, saber se instalar silenciosamente “no frêmito da contingência”[3].
A mística e o amor pelo Todo
A experiência mística envolve sempre a dinâmica de uma relação. Na perspectiva aberta por clássicos pensadores cristãos, como J.Maritain e Louis Gardet, a mística traduz um “conhecimento experimental das profundidades de Deus” ou a “experiência fruitiva do absoluto”[4]. Nela se dá o encontro do sujeito com o Outro, entendido como Mistério maior. Mas há hoje que resgatar um sentido mais “terrenal” da mística, que envolve uma percepção acurada do cotidiano, de forma a desentranhar a dimensão mistérica que habita o ser humano e toda a criação. Em sintonia com a perspectiva aberta por Raimon Panikkar, há que entender a mística como “experiência da vida”, ou como “experiência integral da realidade”[5]. A mística não é uma experiência ultra-mundana, desencarnada e destacada das alegrias e dores do mundo, nem mero apanágio de uma “aristocracia espiritual”, mas um traço ou característica do ser humano em geral, que é capaz de penetrar os meandros da realidade e captar o canto das coisas.
O verdadeiro místico não está jamais deslocado de seu tempo, mas é alguém animado por um “desaforado amor pelo Todo”. A sua experiência do mistério ocorre no coração da realidade, em atenção contínua aos pequenos sinais do cotidiano, num movimento incessante de adentrar-se cada vez mais em sua espessura[6]. Como mostrou com pertinência e sabedoria o místico jesuíta, Teilhard de Chardin, “a pureza não está na separação, mas numa penetração mais profunda do Universo”[7]. Há que ter “uma simpatia irresistível por tudo aquilo que se move na matéria obscura”[8]. Os grandes espirituais e santos são reconhecidos em sua grandeza não por escaparem dos desafios de seu tempo, mas pela “maneira de eles viverem plenamente essa vida comum e fazer com que ela faça desabrochar todas as suas virtualidades”[9]. Singulares místicos como Mestre Eckhart (1260-1327), foram animados por uma sensibilidade particular, de saber captar Deus em todas as coisas, e em todo o tempo e lugar. O verdadeiro espaço de encontro com o Mistério não é o extraordinário, mas o ordinário, o cotidiano do dia-a-dia. O céu se faz presente “em cada ponto da criação, assim como Deus é, de certo modo, a onipresente filigrana de todas as coisas”[10].
A diafania de Deus no Universo
Em sua preciosa obra mística, O meio divino, Teilhard de Chardin assinalou que “o grande mistério do cristianismo não é exatamente a Aparição mas a Transparência de Deus no Universo”[11]. À luz da perspectiva mística cristã, todo o universo vem “banhado de luz interna que lhe intensifica o relevo, a estrutura e as profundezas”[12]. Não há como escapar desta Diafania divina, que a todos envolve e que transparece no mistério da criação. O ser humano vive mergulhado nesse “meio divino”, embora nem sempre se dá conta disso. Para ser capaz de ver Deus em todas as coisas é necessário uma “educação da vista”[13]. De fato, para aquele que sabe ver, “nada é profano neste mundo”[14]. Basta romper com o círculo da superficialidade e das aparências, ultrapassar o ritmo dos nomes e formas, para ser capaz de desvendar o Divino que transparece por todo canto: “por toda a parte, à volta de nós, à direita e à esquerda, atrás e adiante, abaixo e acima”[15]. É o mistério divino sempre-já-aí a assediar, penetrar e modelar o ritmo da criação. De forma ousada, Teilhard reconhece o potencial espiritual da matéria, e indica que é mergulhando em seu seio que o ser humano vem introduzido “no coração mesmo daquilo que é” e alcança a experiência de Deus:
Banha-te na Matéria, filho do Homem. Mergulha nela, lá onde ela é mais violenta e mais profunda! Luta em sua corrente e bebe sua vaga! Foi ela que outrora embalou tua inconsciência – é ela que te levará até Deus![16]
Como tão bem cantou o salmista, “a terra está cheia do amor de Iahweh” (Sl 33,5). E essa alegria vem celebrada pelos céus e firmamentos, que proclamam a glória dessa presença (Sl 19,2; Sl 148; Dn 3,57s). Esse mistério divino que a todos envolve é simultaneamente imanente e transcendente. De um lado, é “incomparavelmente próximo e tangível”, atuando em todas as forças do Universo; de outro, esquiva-se ao abraço, retirando-se sempre para mais longe, em direção às escarpas do desconhecido[17]. Trata-se de um mistério protegido por reserva de gratuidade, que mantém-se permanentemente como dom: é “o eterno descobrimento e o eterno crescimento”[18]. Mas, curiosamente, pode ser alcançado, por aproximação, quando se navega no sentido da profundidade, em direção ao “recanto mais secreto de nós mesmos”, no centro mais íntimo, no “abismo profundo” de onde irradia todo poder de ação[19].
Ao olhar superficial e ingênuo, essa percepção profunda do mistério de Deus em todas as coisas do mundo vem identificada como panteísta. Trata-se de um equívoco que vem logo dissipado quando se aprofunda a perspectiva da dinâmica que envolve a imanência e a transcendência de Deus no mundo. Mesmo quando o místico fala da íntima união selada no amor, permanece resguardada a diferença. Tratando dessa questão, o clássico pensador da escola de Kioto, Keiji Nishitani, sublinha:
Dizer que Deus é onipresente implica a possibilidade de encontrar Deus em toda parte no mundo. Isto não é panteísmo no sentido usual do termo, pois não indica que o mundo é Deus ou que Deus é a vida imanente no mundo mesmo, mas que um Deus absolutamente transcendente é, enquanto tal, absolutamente imanente[20].
Na tradição mística do sufismo, e em particular na obra de Ibn ´Arabi (1165-1240), o mistério de Deus – wujūd ilimitado – pode ser captado através de dois termos-chave presentes na terminologia teológica do islã tradicional: tanzīh e tašbīh. O primeiro termo, tanzīh, vem do verbo árabe nazzaha, que significa “proteger algo de qualquer contaminação”. O termo vem utilizado para assinalar a transcendência e a incomparabilidade essencial de Deus: sua distancia com respeito a toda criatura. O segundo termo, tašbīh, , provém do verbo šabbaha, que significa “fazer ou considerar algo similar a outra coisa”. É um termo que expressa a proximidade de Deus com a sua criação, sua comparabilidade com as coisas existentes. Deus vem, assim, expresso em sua dupla polaridade: é, por um lado, radicalmente transcendente, mas por outro, também imanente[21]. A aproximação de Deus, entendido como o Real (al-Haqq), não pode acontecer quando se privilegia exclusivamente um desses pólos. Ibn ´Arabi serviu-se da história corânica de Noé (Nûh) e os “idólatras” para mostrar que não se pode captar o Real quando se exclusiviza seja o seu lado transcendente, seja o seu lado imanente. Esse mistério é simultaneamente transcendente e imanente. Tanto os “idólatras” como Noé equivocaram-se em sua aproximação ao Mistério. Os “idólatras” por vincularem o Real com os objetos físicos de sua adoração (imanentização) e Noé por vincular o Real com o transcendente. Os primeiros equivocaram-se por desconsiderar a dimensão transcendente do Real e o segundo por negar sua dimensão imanente[22].
Há que sublinhar, porém, que o mistério do Real ou do Todo vem experimentado no âmbito da imanência. Mas é preciso atenção para perceber esse “ponto luminoso” que atua e permanece dentro de tudo o que é real. Não sem razão, filósofos contemporâneos, como André Comte-Sponville , falam da “imanensidade”, para expressar esse mergulho no Todo, que traduz simultaneamente a força da imanência e a abertura para a imensidade. Não só os religiosos estão habilitados para perceber e captar o inusitado de eternidade que habita o cotidiano. O potencial de deslumbramento e admiração diante do Todo ocorre também entre aqueles que dispensam a religião em sua vida, mas que podem estar animados, em alto grau, por qualidades essenciais do espírito. A espiritualidade, como vem mostrando Dalai Lama, envolve a atuação dessas qualidades essenciais, como o amor, a compaixão e a tolerância, que irradiam uma essencial atmosfera de felicidade. O filósofo Comte-Sponville manifesta sua sintonia com espiritualidades que facultam a abertura do ser humano ao mundo, aos outros, ou seja, à realidade do Todo. Trata-se de uma espiritualidade que não encerra o indivíduo em si mesmo, mas que o incita a “habitar o universo”[23].
Ao reconhecer essa diafania de Deus no universo, o ser humano desperta para a presença do mistério em todo lugar. Trata-se do mistério que faz as montanhas saltarem “como carneiros, e as colinas como cordeiros” (Sl 114,4). Não há como refletir sobre o mistério de Deus e do humano sem “ouvir o mundo. O homem não está só louvando a Deus. Louvá-lo é unir-se a todas as coisas em seu hino a ele. Nossa comunhão com a natureza é uma comunhão de louvor. Todos os seres louvam a Deus. Vivemos numa comunidade de louvor”[24].
A consciência e atenção cosmoteândricas
Para expressar essa íntima relação que envolve o cosmos, Deus e o humano numa única aventura espiritual, Raimon Panikkar cunhou a expressão “intuição cosmoteândrica”. Foi o recurso que encontrou para enriquecer o teandrismo da tradição cristã ocidental com a abertura cósmica da tradição ortodoxa. A novidade está na introdução do cosmos, do mundo, da matéria, até então negligenciados na espiritualidade cristã tradicional, muitas vezes identificados com o mal. O cosmos, Deus e o homem são três dimensões constitutivas do real: “uma dimensão de infinito e liberdade que denominamos divino; uma dimensão de consciência, que denominamos humana; e uma dimensão corporal ou material que denominamos cosmos”[25]. É a interpenetração destas três dimensões que impossibilita reduzir a experiência de Deus ao que é puramente imanente ou transcendente. Trata-se, melhor, de uma aventura substantivamente relacional, que faculta acessar a complexidade da experiência mística[26].
A experiência cosmoteândrica demanda uma atenção particular ao cotidiano. Há aqui uma rica sintonia com a experiência zen budista, para a qual “o coração cotidiano é o caminho”[27]. Na visão de um dos grandes pensadores da tradição zen, Daisetz Teitaro Suzuki, a verdade não está deslocada do tempo, mas revela-se nas “coisas concretas” da vida cotidiana. É na vida comum que a mística acontece:
O Zen treina sistematicamente o pensamento para ver isso. Abre os olhos do homem para o grande mistério que diariamente é representado. Alarga o coração para que ele abranja a eternidade do tempo e o infinito do espaço em cada palpitação e faz-nos viver no mundo como se estivéssemos andando no Jardim do Éden[28].
Esta atenção ao cotidiano e sentimento do real são possibilidades bem plausíveis na vida de cada um, e ocorrem em situações que podem ser banais. É o que descreve Nishitani, ao comentar uma passagem do livro de Dostoievski, Memórias da casa dos mortos, onde o autor relata uma experiência singular de abertura ao mistério a partir do impacto emocional da paisagem circunstante: o despertar para o “mundo prenhe de Deus”. O impacto da realidade pode ser diferente para cada pessoa, dependendo da situação particular em que vive e da dinâmica de atenção que a anima. Situações ou experiências cotidianas podem tornar-se “ponto focal” de uma concentração inusitada e intensa, despertando a atenção para um sentimento do real que escapa ao olhar superficial. Algo que aciona e desperta “o profundo sentimento da realidade das coisas cotidianas”[29].
O espírito alerta e a dinâmica da atenção são traços fundamentais da sensibilidade oriental. É a profunda “consciência cotidiana” que impulsiona o recolhimento metódico e sistemático do arqueiro zen e a possibilidade dele estirar o arco espiritualmente e acertar o alvo[30]. É o “espírito do cotidiano” que consolida o estado de espírito essencial do samurai em sua arte marcial: o desenvolvimento de um olhar de discernimento capaz de grande atenção às pequenas coisas[31]. A sabedoria zen procede de uma forma peculiar: não há interesse em prescrições ou considerações teóricas. O que ela suscita é apenas uma atenção desarmada ao real, como ele se manifesta, ou seja, a experiência imediata de ser, eventualmente, tocado pelas coisas e ouvir o seu canto[32]. A linguagem zen vem penetrada pelo aberto ilimitado, onde nada pode ser claramente expresso, para que a admiração encontre morada. Com base numa passagem evangélica de Mateus, o pensador Shizuteru Ueda, assinala que a perspectiva zen é muito mais indicativa que imperativa. Na mencionada passagem se diz:
Olhai os pássaros do céu: não semeiam, não colhem, nem guardam em celeiros. No entanto, o vosso Pai celeste os alimenta (...). Olhai como crescem os lírios do campo. Não trabalham nem fiam. No entanto, eu vos digo, nem Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um só dentre eles (...) (Mt 6,26-28).
Como indica Ueda, um mestre zen procederia de forma distinta da descrita pelo evangelista. Diria simplesmente: “Olhai os pássaros do céu! Olhai os lírios do campo”, sem acrescentar prescrição alguma. Não há melhor ensinamento do que o dado vivo da presença dos pássaros e dos lírios. A simples e delicada evidência, apresentada ao olhar, é suficiente para quebrar o entrincheiramento do sujeito no mundo restrito do eu e o lançar no decisivo desafio de retomada da verdadeira vida[33].
A sabedoria zen marcou místicos cristãos singulares, como o trapista Thomas Merton, para o qual o caminho zen tocava a vida no seu próprio âmago. Mediante o influxo da meditação budista, soube perceber a fundamental importância da atenção aos pequenos sinais do cotidiano. Em descontinuidade com a tradição cartesiana, assinalava que em primeiro lugar estava o ser no mundo, em estado de atenção: sum ergo cogito. Para ele,
o Zen é a percepção plena do dinamismo e da espontaneidade da vida, e por isso não pode ser apreendido pela simples introspecção, e muito menos pelo sonho (...). Exige atenção e esforço reais, além de absoluta e total atenção: entretanto, essa atenção é dada não a uma teoria ou a uma verdade abstrata mas, sim, à vida em sua realidade concreta e existencial, e a todo instante[34].
Thomas Merton aplicou esse espírito zen na sua experiência de trapista. Como mestre de noviços, na abadia de Gethsemani (EUA), realizou esse espírito, na forma de entender e ensinar o sentido da vida contemplativa. Em linha de sintonia com a sabedoria zen, captou o significado real de uma vida contemplativa inserida no tempo. Dizia que “a vida contemplativa era simplesmente viver, como o peixe na água”. Assinalava também que a vida espiritual não podia estar separada de nenhum interesse humano. Realizou sua trajetória de buscador nessa atmosfera de atenção ao real, plenamente consciente da presença permanente de Deus em todo canto[35].
A experiência da profundidade e a dilatação do coração
Um dado interessante que perpassa nas narrativas de místicos importantes como Eckhart, Tauler, João da Cruz e Teresa de Jesus é a relação entre a profundidade da experiência espiritual e a dinâmica do amor solidário. Num de seus sermões alemães, Eckhart sublinha a importância da “límpida humildade” como condição de acesso ao “fundo de Deus”. Ele sinaliza que “quanto mais a alma chega ao fundo e no mais íntimo de seu ser, tanto mais a força divina nela se derrama plenamente e opera veladamente de maneira a revelar grandes obras...”[36]. Isso significa que quanto mais o ser humano penetra o seu mundo interior, mais é capaz de perceber a beleza de todas as coisas, em liberdade espiritual que é única. E o resultado mais efetivo dessa interiorização é a tônica do amor. Em outro sermão, ele diz que “quando a alma com amor flui totalmente em Deus, ela não sabe de mais nada a não ser de amor”[37]. Também Tauler, num de seus sermões, indica que lá onde “o vale é mais profundo é onde a água corre de forma mais abundante”[38].
Com base na reflexão de Mestre Eckhart, pode-se concluir que o caminho do despreendimento é condição essencial para o encontro com a realidade em sua densidade verdadeira. Não há contradição ou tensão entre a experiência interior e a adesão à beleza cósmica. São experiências que se implicam mutuamente. Quando as “coisas” são descobertas em Deus, passam a ser apaixonadamente amadas em sua grandeza. Segundo Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière, dois estudiosos de Eckhart, o despreendimento verdadeiro não provoca uma “extinção das coisas”, mas o seu “recentramento”. A dinâmica do desprendimento não leva à fuga do mundo, mas ao envolvimento, por conaturalidade, de todas as coisas. O ser desprendido é alguém “capaz de amor, é humilde e misericordioso”[39]. Em clássico sermão em torno de passagem de Lucas (Lc 10,38-40), Eckhart encontra em Marta um exemplo de desprendimento. Em sua visão, ela era alguém que conseguiu exercitar radicalmente o fundo da alma, na sua essencialidade. O leitor do evangelho capta a operalidade de Marta. Trata-se, porém, de uma ação marcada por liberdade: de alguém que está “junto às coisas”, mas ao mesmo tempo livre com respeito às mesmas. Na visão de Marta, o encontro com Deus passa pelo mundo e pela vida. Estar “essencialmente” diante de Deus é estar inserido na vida, é possuir “a vida de maneira essencial”[40].
Eckhart é um místico que louva a atividade prática da vida cotidiana, cujo grande exemplo vem encontrado em Marta. Mas o modo como Marta exerce essa atividade é pontuado por grande liberdade, que só pode encontrar-se em alguém que despertou radicalmente para a sua verdadeira natureza, e que exercitou o fundo da alma, aproximando-se do mistério da Deidade. O despojamento vivido por Marta é o resultado de um aprofundamento da “subjetividade que emerge da morte absoluta do ego (...) e do puro vínculo de unidade com Deus”[41]. Um tal despojamento (abgeschiedenheit) não leva à “deserção das coisas, mas posse de si na liberdade com respeito às coisas”, que é também liberdade face a todas determinações particulares[42].
Conclusão
Nada mais urgente no tempo atual que a afirmação de uma nova aliança em favor do resgate da Terra e da salvaguarda da criação. Trata-se de uma escolha que é nossa: “formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida”[43]. Esse cuidado planetário essencial tem viva fundamentação na mística inter-religiosa. O respeito à natureza é um desdobramento evidente de toda perspectiva mística, pois ela mesma, em sua beleza, reflete os rastros de Deus[44], ou do Mistério maior, sem nome. Os místicos falam do mistério inacessível de Deus, da impossibilidade de sua compreensão no tempo. Apontam, porém, a possibilidade de captar sua fragrância nesse espaço da contingência. O capadócio, Gregorio de Nissa, fala do “perfume difuso” da natureza divina na criação: todo o universo é portador desse aroma que traduz o mistério da Vida[45]. A tradição mística ortodoxa fala em filocalia, que literalmente significa “amor pela beleza”. A oração hesicasta tem como objetivo essencial despertar essa “sensibilidade à presença de Deus em todas as coisas”[46]. Toda mística autêntica busca revelar um novo olhar sobre o mundo, ou melhor ainda, captar o outro mundo que habita esse mundo. Abre-se com ela a possibilidade de ver o mundo transfigurado, de ver “a chama das coisas”, e resgatar o “corpo energético da terra”. Daí a importância fundamental de reafirmar o sentido místico da consciência planetária.
Artigo publicado no livro: Consciência Planetária e Religião, organizado por Pedro A.Ribeiro de Oliveira & José Carlos Aguiar de Souza. São Paulo: Paulinas, 2009, pp. 211-232 (e também publicado na Revista Eclesiástica Brasileira, n. 277, de janeiro de 2010)
[1] Leonardo BOFF. Do iceberg à Arca de Noé. Rio de Janeiro: Garamond, 2002, p. 117.
[2] Adolphe GESCHÉ. O cosmo. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 5.
[3] Ibidem, p. 46.
[4] Jacques MARITAIN. Les degrés du savoir. 5 ed. Paris: Desclée de Brouwer, 1946, p. 489-490; Louis GARDET. La mystique. Paris: PUF, 1970, p. 5.
[5] Raimon PANIKKAR. L´esperienza della vita. La mistica. Milano: Jaca Book, 2005, pp. 15, 42, 57 e 175; Id. Mistica Pienezza di vita. Milano: Jaca Book, 2008 (Opera Omnia v. I/1).
[6] Maria ZAMBRANO. Algunos lugares de la poesía. Madrid: Trotta, 2007, pp. 127 e 129.
[7] Pierre TEILHARD DE CHARDIN. Hymne de l´univers. Paris: Seuil, 1962, p. 67 (utilizaremos aqui a tradução brasileira: Pierre Teilhard de Chardin. Hino do universo. São Paulo: Paulus, 1994).
[8] Ibidem, p. 19.
[9] Adolphe GESCHÉ. O cosmo, p. 55.
[10] Alois M. HAAS. Introduzione a Meister Eckhart. Fiesole: Nardini, 1997, pp. 113-114 (ver ainda pp. 22 e 26); Leonardo BOFF (Org.). Mestre Eckhart. A mistica de Ser e de não Ter. Petrópolis: Vozes, 1983, pp. 42-43.
[11] Pierre TEILHARD DE CHARDIN. O meio divino. Lisboa: Presença, s/d, p. 150.
[12] Ibidem, p. 149.
[13] Ibidem, p. 43.
[14] Ibidem, p. 66.
[15] Ibidem, p. 127.
[16] Pierre TEILHARD DE CHARDIN. Hymne de l´univers, pp. 67-68 (e também p. 72).
[17] Pierre TEILHARD DE CHARDIN. O meio divino, pp. 128-129.
[18] Ibidem, p. 160.
[19] Ibidem, pp. 80-82.
[20] Keiji NISHITANI. La religione e il nulla. Roma: Città Nuova, 2004, p. 73.
[21] Toshihiko IZUTSU. Sufismo y taoísmo. 2 ed. Madrid: Siruela, 2004 (Ibn ´Arabi v. 1), pp. 63-64.
[22] IBN ´ARABI. Le livre des chatons des sagesses. Beyrouth: Al-Bouraq, 1997, p. 116-119.
[23] André COMTE-SPONVILLE. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 136-137 e182-183; DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, pp. 32-33.
[24] Abraham J. HESCHEL. Deus em busca do homem. São Paulo: Paulinas, 1975, p. 128.
[25] Raimon PANIKKAR. Entre Dieu et le cosmos. Paris: Albin Michel, 1998, pp. 133-135 (aqui p. 135). Ver ainda: Paul KNITTER. Introduzione alle teologie delle religioni. Brescia: Queriniana, 2005, pp. 254-257.
[26] É nessa perspectiva que se pode entender o clássico verso de Angelus Silesius: “Sei que sem mim Deus não pode um momento viver. Se eu nada me tornar, ele deve por certo morrer”: Il pellegrino cherubico. 3 ed. Cinisello Balsamo: San Paolo, 2004, p. 108 (I,8). Ver ainda, p. 154 (I,275): “Homem, tudo te ama! Tudo te rodeia: Tudo recorre a ti para chegar até Deus”.
[27] Masumi SHIBATA. Passe sans porte. Paris: Villain et Belhomme, 1968, p. 79 (em outra tradução: “o espírito do cotidiano é o caminho”.
[28] Daisetz Teitaro SUZUKI. Introdução ao zen-budismo. São Paulo: Pensamento, 1999, p. 66.
[29] Keiji NISHITANI. La religione e il nulla, pp. 38-40.
[30] Eugen HERRIGEL. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. São Paulo: Pensamento, 1978.
[31] William Scott WILSON. O samurai. A vida de Miyamoto Musashi. São Paulo: Estação Liberdade, 2006, pp. 160 e 173.
[32] Shizuteru UEDA. Zen e filosofia. Palermo: L´epos, 2006, pp. 206-208.
[33] Ibidem, pp. 207-208.
[34] Thomas MERTON. Místicos e mestres zen. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 236. Ver também: Id. Zen e as aves da rapina. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1972, pp. 34,39 e 66.
[35] Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memórias 1. Madrid: Trotta, 2005, pp. 144 e 187.
[36] Mestre ECKHART. Sermões alemães 1. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 297 (Sermão 54 a).
[37] Mestre ECKHART. Sermões alemães 2. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 67 (Sermão 71). Ver a semelhança com a passagem de Cântico dos Cânticos 2,4 e Cântico Espiritual de João da Cruz (Canção XXVI).
[38] Giovanni TAULERO. I sermoni. Milano: Paoline, 1997, pp. 418-419 (Sermão 45). Ver também: TERESA DE JESUS. Obras completas. São Paulo: Loyola, 1995, p. 484 (Castelo Interior – Quartas Moradas 3,9).
[39] Mestre ECKHART. Sobre o desprendimento. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. XXIII e XXIV (Introdução de Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière).
[40] Mestre ECKHART. Sermões alemães 2, pp. 128 e 133 (Sermão 86).
[41] Keiji NISHITANI. La religione e il nulla, p. 100.
[42] Gvendoline JARCZYK & Pierre-Jean LABARRIÈRE. Le vocabulaire de Maître Eckhart. Paris: Ellipses, 2001, pp. 14-15.
[43] A Carta da Terra. In: Leonardo BOFF. Do iceberg à Arca de Noé, p. 149.
[44] SANTO AGOSTINHO. Confissões X,6,9. In: Os pensadores VI. São Paulo: Victor Civitta, 1973, pp. 198-199.
[45] GREGORIO DI NISSA. Omelie sul cantico dei cantici. 2 ed. Roma: Città Nuova, 1996, pp. 51-52 (Omelia I).
[46] Jean-Yves LELOUP. Prefácio. Relatos de um peregrino russo. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 13,17 e 29.
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